terça-feira, 2 de agosto de 2011

“Batuque é privilégio...”


O jornalista Samuel Wainer conferindo as rotativas do Última Hora

Por Lan

A Samuel Wainer, devo a oportunidade de ter ficado no Brasil, a partir de 1952. E não é para esnobar não, mas integrei sua equipe ao lado de companheiros como Vinicius de Moraes, João Cabral de Melo Neto, Otto Lara Rezende, Nélson e Augustinho Rodrigues, Joel e Paulo Silveira, Justino Martins, Hélio Peregrino, Nassara e tantos outros monstros sagrados da imprensa brasileira.

Seu jornal, Última Hora, e mais tarde Flan, o excelente semanário que também fundou, nasceram na Praça Onze. Infelizmente, não a antiga, aquela sentenciada no imortal samba de Herivelto Martins e Grande Otelo: “Vão acabar com a Praça Onze/ Não vai haver mais escolas de samba, não vai...”, e sim a outra, a do samba de Waldemar Ressurreição e Evaldo Rui: “Tu fostes antigamente a Praça Onze/ Teu bonde de tostão era ideal...”.

Praça pranteada antes e depois da avenida Presidente Vargas pedir passagem. Mas que continua existindo na encruzilhada de todos os caminhos da velha boemia carioca, que levam à Lapa, Cinelândia, Praça Tiradentes, Praça Mauá, Estácio (pra não falar em Mangue), e ao lado da Central do Brasil, de onde partem os trens para os pagodes suburbanos, à sombra da tradicional Favela.


Foi nela, na querida Praça Onze, onde, modéstia a parte, começou meu aprendizado carioca, detrás do primeiro bloco de sujos que passou ouriçando o Carnaval de 53.

Nesse ano, as escolas de samba ainda desfilavam numa passarela montada na avenida Presidente Vargas entre Rio Branco e Uruguaiana.

Ganhou a Portela.

Mas eu não vi.

O carnaval tinha me engolido na véspera.

Tive que me conformar em assistir à segunda colocada, Império Serrano, desfilando na quarta-feira de cinzas em Niterói.

Desse primeiro contato com uma escola, guardo na memória a imponente beleza de Olegária, destaque pioneiro da Serrinha, a leveza de seus passistas, o ritmo alucinante de sua bateria, e a roda de samba que alguns integrantes da escola improvisaram alegremente na barca da Cantareira de volta ao Rio de Janeiro.


Entre eles, nomes que mais tarde conheci e que respeito até hoje, como o de Silas de Oliveira – a meu ver, o maior compositor de samba-enredo de todos os tempos – Fuleiro, Mano Décio, Aniceto, Ivone Lara.

O refrão na boca de todos: “A baiana me pega, me joga na lama, eu não sou camarão, camarão me chamam...ai, baiana!...”.

Negras, mulatas, cabrochas e morenas maravilhosas rindo, provocando, incentivando os partideiros.

Bocas carnudas, confortáveis.

Olhos rasgados de malícia e sensualidade.

Trejeitos de Lundu.

Foi amor à primeira vista.


Amor mais forte e colorido talvez, do que aqueles que em outras etapas da minha vida, fizeram de mim um gaúcho no interior do Uruguai e da Argentina, ao som, das quenas, guitarras, charangos e bombos legueros.

Ou milonguero portenho nos lamentos do bandoneón de Anibal Troilo (Pichuco) em Buenos Aires.

A esse amor, porém, fiquei devendo meu primeiro livro, que é este.

Ainda nesse ano, e pela mão de Édson Carneiro, fui conhecendo o terreiro da Unidos do Salgueiro, seu lendário Casemiro Calça Larga, e um porre mais lendário ainda, de conhaque de Alcatrão.

Mangueira do Buraco Quente e do angu da Ifigênia.


Portela, sua jaqueira e seus admiráveis anfitriões: Caninha Verde, Manoel Bam Bam Bam, Rufino, João da Gente, João Calça Curta, Armando Santos e tantos outros bambas que me deram régua e compasso para esta crônica gráfica das escolas de samba.

Tenho acompanhado a vida de quase todas elas, a partir de 53, e a fantástica trajetória por elas percorrida.

Principalmente no desfile deslumbrante que apresentam no domingo de Carnaval.

Hoje em dia, sem exagero, o maior espetáculo popular do mundo.

Muitas coisas mudaram, algumas para melhor, se considerarmos a riqueza, o luxo, o requinte, a sofisticação com que desfilam a maioria delas, elementos positivos de julgamento.

Outras, infelizmente, aquelas que detalhavam a criatividade do sambista, nos seus aspectos mais subjetivos, nas suas expressões mais autênticas, se não se perderam, diluíram-se no gigantismo das escolas.

Que foram invadidas a partir dos anos 60, por uma verdadeira multidão de entusiastas “ciscadores”, que preferem brincar no carnaval das escolas, a ficar olhando o carnaval das escolas.


E isso, porque o carioca é antes de mais nada um folião nato, que gosta, quer e tem que participar do carnaval.

Não me cabe, neste livro, polemizar sobre este particular, e sim aplaudir, sem pieguismo, mais esta vitória do negro brasileiro que, com seu talento criador, contagiou a cidade inteira e, generosamente, como dizia meu irmão Candeia: “Damos do nosso coração/ alegria e amor/ a todos sem distinção de cor...” e a oportunidade de participar dessa festa.

O gigantismo das escolas, porém, determinou a necessidade inevitável de maior espaço.

Na medida em que elas foram crescendo, o local do desfile cresceu também.

Assim, da antiga passarela, as escolas do primeiro grupo, passaram a desfilar na avenida do Rio Branco, entre Almirante Barroso e Santa Luzia.

Daí, voltaram outra vez para a avenida Presidente Vargas, só que então, ao longo de quase um quilômetro, que é a distância entre a igreja da Candelária e a avenida Passos!

Este foi sem dúvida, o mais digno, o melhor dos cenários oferecidos às escolas, e à multidão de espectadores que se aglomeram anualmente para aplaudi-las.


Acredito ter sido o maior espaço, e a necessidade de se ocupar esse espaço, os grandes responsáveis pela série de inovações apresentadas pelas escolas visual, coreográfica e até estrutural do desfile, nos últimos anos.

Já na avenida Rio Branco, Arlindo Rodrigues e Fernando Pamplona, tinham revolucionado totalmente o estilo tradicional das fantasias e alegorias do Acadêmico do Salgueiro, com “Quilombo dos Palmares”.

Deslumbraram a platéia com um desfile de “bom gosto” que deu margem a inúmeras polêmicas entre “puristas” e adeptos dessa verdadeira “bossa nova visual”.

Mas na verdade, o tão controvertido “bom gosto” desses dois admiráveis artistas, que fez do Salgueiro realmente uma escola diferente, foi, a meu ver, a maior demonstração de amor e respeito já oferecida por dois brancos à cultura africana e afro-brasileira dentro de uma escola.

E uma contribuição estética, que jamais pretendeu agredir a tão decantada autenticidade.

Pois autenticidade não é sinônimo de ignorância.

Devolvendo ao negro brasileiro o que o próprio negro criou, em forma de esculturas, máscaras, adereços, vestimentas etc., eles mostraram o que de mais nobre e belo herdamos dessa cultura.


Uma escola de samba, por outro lado, não tem compromisso folclórico cristalizado.

Ela participa de uma competição, e da maior ou menor criatividade que apresente em cada um dos quesitos julgados, depende seu sucesso.

Daí, toda inovação que não agrida suas origens é válida.

A beleza visual que Arlindo Rodrigues e Fernando Pamplona, trouxeram na avenida, despertou tamanho apoio popular, que mesmo a revelia, as campeoníssimas Portela, Império Serrano e Mangueira, tiveram que modificar a tradicional ingenuidade de seus figurinos e alegorias, para concorrer com Acadêmicos do Salgueiro.

Sobreveio assim a necessidade de se contratarem profissionais do “metier”, cuja vivência de escola era pouca, ou quase nenhuma.

Os resultados logicamente nem sempre foram felizes.

A visão ocidental desses improvisados “carnavalescos” transformou o desfile muitas vezes em verdadeiros shows, dignos do Folies Bergère ou da Broadway.

Mas como se diz hoje em dia: tudo bem.


As escolas continuam num processo irreversível de faraônico deslumbramento, cujo extraordinário sucesso, torna obsoleto qualquer argumento em contrário.

Como bem disse Joãozinho Trinta: “Pobre gosta de luxo”.

E no meio do luxo, cabe acrescentar, de continuar descobrindo seus ídolos: Fuleiro, Wilma, Xangô, Neide, Benício, Paula, Delegado ou André, à frente da bateria da Mocidade Independente de Padre Miguel.

Pois “batuque é privilégio” e, enquanto isso acontecer, haverá Escolas de Samba.

Esse livro nasceu em Paris, no ano de 1966.

Lembro uma carta oral que Vinícius de Moraes enviou a Tom, e que ouvi na casa de Francette de Rio Branco.

Nela, falava que a saudade do Brasil quando se vive no exterior, se sente mais em forma de samba tradicional, do que no estilo “bossa nova”.

Nada mais certo.

“Aquarela do Brasil” continua arrepiando a gente lá fora.

Quanto mais, ouvindo a bateria da Portela, gravada num disco que achei por acaso no apartamento de Samuel Wainer da Rue Davioud!


Foi lá que surgiu o primeiro desenho, ao compasso do surdo de marcação.

O desenho das baianas que ilustram este depoimento, e que vendi a meu inesquecível amigo Horacinho de Carvalho, para arredondar o preço da passagem de volta ao Rio de Janeiro.

Doze anos depois, graças a um portelense santista Toninho Nahas, o “Turco”, filho de árabes dos quais não herdou nenhum poço de petróleo, e sim, umas dez “refinarias de sensibilidade”, cumpro a promessa que fiz a mim mesmo, de dedicar meu primeiro livro às escolas de samba.

Livro sem lantejoulas nem paetês.

No estilo “desesperado de la ternura”, que é a caricatura, inspirada no convívio pele a pele com toda essa gente maravilhosa.


Nos terreiros, nas favelas, nos barracos dos morros, ou nas casas suburbanas.

Onde nunca falta um São Jorge na parede, um violão, uma cerveja geladinha, e principalmente, amor.

Simplicidade.

Filosofia de vida que nossos poetas populares esbanjam nos seus sambas, e que poucos aproveitam.

Infelizmente.

Pelo muito que me ensinaram, pelo muito que aprendi, gostaria de agradecer um por um.

Mas são tantos, que os reúno num nome só, onde cabem todos.

Candeia, obrigado.



IMPORTANTE:

Esse texto é o posfácio do livro As Escolas de Lan, com desenhos do cartunista Lan e texto de apoio de Haroldo Costa, atualmente fora de catálogo, que está sendo postado a conta gotas aqui no mocó.

Os post anteriores (com exceção do texto do Moacyr Luz) também fazem parte da obra.

segunda-feira, 1 de agosto de 2011

Meu Virgílio da Divina Comédia Carioca


Por Haroldo Costa

Em dia de sol e azul total, ele estaciona sua nuvenzinha ao pé do Pão de Açúcar e vai a praia.

Como todo carioca.

De preferência, ao lado de alguma certinha, o que no Rio não é difícil.

Só dá certinha.

Em dia de chuva, ele sobe mais um pouco e vai se encontrar com Silas de Oliveira, Paulo da Portela, Ismael Silva e com Natal na cabeceira, improvisam um partido alto.

Mais alto do que nunca.

O resto do ano, fica ali mesmo.

Ancorado em qualquer parte da Guanabara, paquerando a cidade, que também é mulher.

Autor do antológico “Samba do Crioulo Doido”, que foi o melhor caricatura já feita, de compositores de escola de samba, não podia deixar de entrar nesta homenagem, pelo tanto que fez por todos eles.

Seu nome não foi, é Sergio Porto, ou se preferirem, Stanislaw Ponte Preta.

Meu Orfeu Negro


Por Vinicius de Moraes

Conheci Haroldo Costa em Paris, em 1954, quando ali esteve com o grupo folclórico negro “Brasiliana”: idéia sua que Miecio Askanazy empresariou e levou adiante.

O pioneirismo da iniciativa e o relato circunstanciado das extraordinárias aventuras por que passou o conjunto, sobretudo em sua turnê sul-americana, fizeram-me de saída amigo de Haroldo: e boas risadas demos à lembrança das trapalhadas em que andou metido.

Cozinhei-lhes uma feijoada – e se tivesse dado a cada um seu peso em ouro não teriam saído mais felizes.

Dois dias depois ele me mandava dizer de Bruxelas que ainda tinha na boca o gostinho do molho de pimenta que eu lhes tinha servido.

Pudera! Tratava-se de uma pimenta africana que eu tinha encontrado na “Maison Hediard”, ali na Madeleine: fogo puro!

Em 1956, quando consegui financiamento para minha peça “Orfeu da Conceição”, foi em Haroldo Costa que finalmente nos fixamos, o diretor Leo Jusi e eu, para o papel-titulo.


Ele aliava ao physique du role um grande refinamento natural, que o levou a trabalhar sua personagem num sentido mais poético, como queríamos: um deus do morro, que com seu violão e seus sambas dilacerava o coração de todas as mulheres, acabando por atrair sobre si a tragédia e a morte.

Era uma iniciativa também pioneira, pois o teatro negro no Brasil limitava-se ainda aos corajosos esforços de Solano Trindade e Abdias Nascimento, e tudo teve que ser feito a bem dizer do nada.


Oscar Niemeyer largou seus projetos em andamento e veio fazer o cenário que lhe pedimos.

Antônio Carlos Jobim sentou-se ao piano e compôs sua primeira ouverture, além dos primeiros sambas de nossa parceria.

O bom Ciro Monteiro meteu sua caixa de fósforos no bolso e encarou que lhe com a maior seriedade em cena aberta.

Léa Garcia, antes do seu excelente desempenho no filme “Orfeu Negro”, extraído (a meu ver mal) da peça, era uma figura inesquecível, um figurino vermelho de Lila Bóscoli contra o ciclorama estrelejado.

E uma surda exclamação uníssona de admiração ergueu-se da platéia quando, ao som dos últimos acordes da ouverture de Jobim, o pano-de-boca abriu sobre o cenário de Niemeyer, na elegante noite de estréia no Teatro Municipal totalmente lotado.

“Orfeu da Conceição” marca o inicio do aproveitamento em larga escala do artista negro brasileiro, no teatro e em shows de boate.


E Haroldo Costa, pelo rigor seu profissionalismo e dignidade do seu desempenho, constitui certamente um exemplo para seus colegas de profissão.

A compostura do seu comportamento humano e artístico, aliado a uma inteligência arejada e despreconcebida, fazem dele, também, um autêntico líder de sua gente.

Mas não líder metido a tal.

Um que se fez porque sente o drama de sua raça e procura sempre levantá-la através das manifestações mais validas de sua contribuição à cultura brasileira: o ritmo, a música e a dança.


Trabalhador incansável, sua atuação em TV e nas boates tem sempre a distingui-la esse traço de amor à arte e aos mitos negros, mas sem qualquer preconceito e vasto amor pela beleza e pela cultura, no sentido de um Brasil cada vez mais humano e integrado.

Para mim, Haroldo Costa estará sempre ligado à imagem do meu Orfeu Negro, tal como o criei, com todo o patético do mito grego transportado para o morro e o carnaval carioca.

Somos amigos fraternos, e o melhor que dele poderia dizer é o que ele mesmo cantava em cena:

Se todos fossem iguais a você

Que maravilha viver...

O Cidadão Carioca


Por Sergio Porto

Claro, eu nasci ali, na primeira transversal à esquerda como, aliás, todos os meus irmãos.

Mudei-me para aqui e aqui fiquei.

Sou, portanto, um caso raro – só me mudei uma vez em toda a minha vida.

Sou carioca e tenho diversos amigos cariocas, nesta cidade de tantos brasileiros.

Vinicius de Moraes nasceu na Gávea, Lúcio Rangel na Tijuca, Di Cavalcanti em São Cristóvão – que naquele tempo era Chistovam –, Haroldo Barbosa, como Noel, é da Vila, Millor Fernandes do Meier, Anna, minha babá, que ontem aqui esteve de visita, nasceu, batizou-se em Copacabana.

Somos todos cariocas, nascidos Porto, Morais, Rangel, Cavalcanti, Barbosa ou Fernandes, como provam nossas respectivas carteiras de identidade e, no entanto, muitas vezes me tenho perguntado se seremos tão cariocas quanto Lanfranco Rosetti Vaselly Rossi-Rossi, natural de Firenze, criado em Montevidéu, formando em Buenos Aires e que, neste momento, pode ser encontrado em algum lugar de Santa Tereza.

Segundo o escritor Luiz Jardim – que sinal é de Garanhuns – todo brasileiro que vem para o Rio carioquiza-se e todo brasileiro que não vem não sabe o que perde.

Nós – os de casa – não nos preocupamos muito em conhecer nossa cidade (e se vocês prometem não contar pra ninguém eu lhes confesso que nunca subi ao Pão de Açúcar).

Às vezes nos tomamos de amores por ela, ficamos líricos, fazemos um verso, uma crônica, e os que vêm de Pernambuco, de Alagoas, Acre ou Paraná são, quase sempre, mais apaixonados do que nós ou, pelo menos, mais exuberantes em sua paixão.


Nada disso, porém, acontece com Lanfranco Rosetti Vaselly Rossi-Rossi.

Ele não nasceu aqui e nem descobriu o Rio – era um carioca predestinado.

Um dia confessou-me que, desde menino, pensava em poder morar no Rio, falar português (hoje ele não fala português, fala carioca), mergulhar nas ondas de Copacabana, subir o Morro da Mangueira, dançar um samba na “Estação Primeira”.

Perdeu-se pela música.

Principalmente pela música.

Quando menino, em Montevidéu, aguardava o dia inteiro um programa do rádio local, onde somente tocavam sambas.

Chamava-se – e ele nunca mais esqueceu – “Ritmos Cariocas”.

Lanfranco Rosetti Vaselly Rossi-Rossi voltou para a Itália, reviu Florença, passou por Milão e surpreendeu-se a comparar a Baia de Nápoles com a Guanabara que ele nunca tinha visto.

E era preciso conhecer.

Lanfranco voltou para a América, trabalhou em Buenos Aires e quando a oportunidade chegou, saltou na Praça Mauá perguntando onde morava o Cartola.

Que Cartola? – indagaram.

E Lanfranco Roserri Vaselly Rossi-Rossi, admirado de não saberem, explicava que Cartola era o grande sambista de Mangueira, o mesmo que era exaltado toda hora nas letras dos sambas modernos.

Uns não sabiam, outros diziam que já morrera e houve quem dissesse que Cartola enlouquecera.

O que fora sempre um entusiasta do samba não acreditou.

Quis ver para crer.


Subiu o morro, conheceu muitos sambistas, ficou amigo de todos, e acabou descobrindo Cartola – o Angenor de Oliveira, de quem ouvia os sambas lá em Montevidéu, com o ouvido pregado no rádio.

Lanfranco Rosetti Vaselly Rossi-Rossi tem um leve sotaque, mas sabe todas as gírias, assobia qualquer samba do falecido Geraldo Pereira e eu duvido que Mangueira não abra seu salão, quando por lá aparece.

Lanfranco conhece todas as ruas de Copacabana, passeia pela Zona Sul como eu, que aqui nasci.

Morou no Leme e na Rua do Riachuelo.

Agora este em Santa Tereza, mas vai mudar-se para Paquetá.

Se ele estiver parado numa esquina do Leblon e você perguntar onde fica Mangueira, ele explica direitinho: toma-se o “Estrada de Ferro-Leblon”, salta-se na cidade, pega-se o “Mauá-Inhaúma”, mas que seja Via Jacaré, etc., etc.


Mas se você estiver em Portela e quiser ir ao “Sacha’s”, pergunte ao rapaz loiro e de óculos, que está a um canto desenhando num papel os passos das cabrochas.

Ele explica direitinho.

A cidade não tem segredos para Lanfrenco, de família Rossi-Rossi.

Se é verdade que todos somos cariocas, até mesmo os prefeitos que antecederam ao atual, se é verdade o que diz o escritor Luiz Jardim, então – caramba! – mais de nós todos é Lanfranco ou, se preferem, o Lan, caricaturista notável, cidadão carioca.

Mitos Cariocas: Lan


Por Moacyr Luz

Minha amizade com o mestre Lan passa dos dez anos.

A certeza dessa conta tenho por ter intermediado uma encomenda dos craques do Pirajá para o artista, um cartão de boas festas do bar para o ano de 2000.

Pode parecer pouco, mas somos diários.

Nossas conversas pela manhã têm um tom nostálgico.

Ele reclama da incompatibilidade atual entre seu fígado e as jarras de caipirinha que gosta de beber.

Eu, de quase tudo que se chama álccol.

Lan, carinhosamente falando, é uma éspecia de Forrest Gump da cultura carioca depois dos anos 50.

Fez as capas de discos fundamentais como um clássico em violao e voz do genial Dorival Caymmi.

Desenhou todos os sambistas imagináveis de todas as escolas de samba da nossa cidade e, em especial, da Portela, azul do seu coração.

Me conta que em 1953, acompanhando uma caravana de jornalistas em estudos sobre os morros e suas agremiações foi surpreendido pela elegância dos componentes da Madureira.

Comandados por Paulo da Portela, a recepção marcou de vez a alma desse ítalo-carioca, o mestre das mulatas.

Bem recente, convidei-o pra assistir um jogo da Copa de 2006 num bar em Copacabana.

Ele se despencou de Itaipava, seu bunker atual, para o encontro, mas um chuva forte mudou nossos planos e fomos parar no aconchegante Degrau do Leblon.

Fim da partida, vitória suada, céu mais claro, fomos ao programa de origem, o bar de Copa.

Já na esquina, estranhei o movimento das radio-patrulhas.

Uma briga de torcida fez o recinto virar pó diante da rivalidade entre a Miguel Lemos e a turma da Barata.

Salvos, bebemos umas no Pavão Azul.

Em 2005, lancei um disco especial, “A Sedução Carioca do Poeta Brasileiro”.

Era um trabalho lítero-musical: musicar poemas de importante poetas brasileiros que tiveram a cidade do Rio de Janeiro como inspiração.

Havia Manoel Bandeira, Drumond e Mario de Andrade, todos por um instante, cariocas.

Marquei com o Lan no Bar Luiz pra falar sobre a capa desse CD, mas ele já chegou com idéia pronta, definitiva:

- O morro Dois Irmãos comparado as pernas de uma mulher.

E disse mais:

- São dois amantes, não irmãos.

Quem me apresentou esse amigo foi o parceiro Aldir Blanc.


Um pouco antes dessa capa, pensávamos num série de personalidades que a gente poderia imaginar, como um inventário humano da nossa cidade.

O nome Lan veio de cara e o samba acabou entrando no disco “Samba da Cidade”.

Se chama “Mitos Cariocas: Lan”.

É a nossa homenagem a esse artista que permanece intenso nas suas caricaturas semanais traduzindo em linhas sinuosas nossa maior curva:

- A vida.


Portelense,
bom de tango e coração circense,
arrebenta
com a pimenta braba do non sense.
Um menino
cujo defeito é não ser vascaíno.
Tipo avô
que endurece com mulata em “flô”.
Um canalha da Itália,
milongueiro, brasileiro.
Buzanfã
é tema pro élan do Lan.

Peixe-espada
temperado numa feijoada.
De virada,
não despreza o molho da rabada.
Pesquisando,
sacou que toda moça tem seu mel.
Bacharel,
pós-graduado dentro de um bordel.
Quem qui pode
como Bigode
Se der bode
com a patroa
numa boa,
é tema pro élan do Lan

No lápis dançam Irmãs Marinho,
Tijolo e Nelson Cavaquinho,
Narcisa e Clementina de Jesus
Zé Kéti, Alcides, Padeirinho
Neide, Natal, Vilma e Neguinho
Élton Medeiros e Arlindinho Cruz.

Das Oropa, Rei de Copa,
pagoderio, carioca,
no Amazonas e na Mooca,
bota e soca, na Mococa
Não tem toca, bom de boca
Pocahontas ficam tontas
vivem loucas,
sentadas no tchan do Lan.

Meu amigo, esse samba,
jeito antigo, fiz prum bamba,
tô contigo, boi não lamba
choram as sete cum tantã,
quase aurora, Iansã,
sem bambam,
vô mimbora pro amanhã
no Katamarã do Lan!!