segunda-feira, 4 de abril de 2011

GRES Reino Unido da Liberdade - Carnaval 2000


Enredo: Nem Guarany, Nem Guaraná

Logo após o vitorioso carnaval homenageando a Banda Independente Confraria do Armando (BICA), foi realizada a eleição para presidente da escola.

O GRES Reino Unido inova mais uma vez elegendo Socorro Colares, a primeira mulher a ocupar o cargo de presidente de uma escola de samba de Manaus, para um mandato de dois anos.

Mais um feudo machista era destruído pelos meninos do Morro.

Socorro Colares e seu vice-presidente Jairo de Paula Beira-mar, sem grandes recursos, mas com muita força de vontade, realizam uma boa administração, preocupando-se cada vez mais com a questão social.

Os dois idealizaram e implantaram vários projetos sociais na agremiação, como a realização do projeto “Terceira Idade”, voltado exclusivamente para as senhoras da comunidade que faziam parte da Ala das Baianas.

Eles também incrementaram as atividades da Bateria Mirim, coordenada pelo diretor Alce.

Para atrair a molecada para os ensaios na quadra, eles começaram a servir – depois dos ensaios, evidentemente – o “Sopão da Resistência”, numa das primeiras iniciativas de inclusão alimentar proporcionada por uma escola de samba.


Bosco Saraiva, Socorro Colares, Zé Picanço e Carlão

Com as atividades da agremiação sendo realizadas com sucesso, a comissão de carnaval decide que o enredo para o carnaval do ano 2000 seria uma homenagem ao Cine Guarany.

– A Reino Unido vai mostrar na avenida a importância do patrimônio histórico, alertando a população para a preservação de nossa memória afetiva –, afirmou Socorro Colares. “Nossa escola quer alertar sobre a manutenção necessária de nossos valores culturais, além de exaltar os 500 anos do Brasil”.

Segundo o carnavalesco Chico Cardoso, o carnaval carecia de um tema cuja importância tocasse fundo o espírito de reconstrução de uma cultura aviltada no passado e desvalorizada no presente.

“Falando sobre o Cine Guarany, como metáfora, nós podemos denunciar o descaso das autoridades pelo patrimônio público. Resistir é preciso”, alfinetou.

Ao abordar a história do Guarany, um cassino-teatro-cinema construído no período áureo da borracha e batizado de cassino Julieta, a escola pretendia recuperar um pouco da memória cultural da cidade e revisitar as mais caras tradições amazonenses.

Para mostrar que seu compromisso com a cultura do nosso Estado vai muito além do discurso, a diretoria da Reino Unido editou, com recursos próprios, a 2ª edição do livro “Hoje tem Guarany”, dos professores universitários Narciso Lobo e Selda Vale, e fez o lançamento da obra, com a presença dos dois autores, na quadra da escola, durante a “Festa da Imprensa”.

Foi nesse trabalho que o carnavalesco Chico Cardoso se baseou para desenvolver o enredo.

A história é interessante. No dia 21 de junho de 1907, centenas de pessoas se acotovelaram na Praça da Polícia para acompanhar, à distância, a algazarra dos insignes convidados para a inauguração do Theatro Cassina Julieta, na rua Floriano Peixoto, canto com a Sete de Setembro.

Em pouco tempo, ele tornou-se o “hot point” dos endinheirados amazonenses.


O cassino Julieta foi restaurado em 17 de fevereiro de 1912, tendo o nome mudado para Cine-Theatro Alcazar.

Em 1938, ele passou a se chamar simplesmente Cine Guarany, por conta do grande avanço da arte cinematográfica como entretenimento popular, graças ao fim do cinema mudo e início do cinema falado.

Já naquela época, havia sessões para todos os gostos. Matinal às 9h para o público infantil, matinê das 13h, para o infanto-juvenil, matinê das 16h para os jovens mais crescidinhos, além da sessão de gala, às 20h, para o público adulto.

O "Cinema ao Ar-Livre" (com tela nas alturas, montada no Café do Pina), uma iniciativa do lendário Vovô Vasco, começava às 19h, indo até às 19h30.

Ali eram apresentados desenhos animados do tipo “Tom e Jerry” e “Popeye, o marinheiro”, para um público flutuante de baixa renda, que não tinha condições de comprar ingressos para assistir as sessões tradicionais.

Na matinal e matinê das 13h, eram distribuídas centenas de brindes para os freqüentadores, que iam de miniaturas de sabonetes e pasta de dente, até revistas infantis, passando por balões e bombons – rapidamente substituídos por chicletes, devidamente mascados e pregados nos cabelos compridos das menininhas (maldade "curtida" intensamente pelos meninos da época).

No escurinho do cinema, a onda era dar “acocho” nas menininhas disponíveis e fumar escondido no banheiro, torcendo para não ser pego pelos taciturnos “lanterninhas”.

Na saída, a molecada se reunia para trocar gibis e falar sobre o filme.


Freqüentador do Guarany desde a adolescência, o artista plástico Marius Bell recorda a pompa com que as sessões começavam.

"Com o cinema todo no escuro, as cortinas iam se abrindo lentamente, em meio a uma policromia luminosa nas laterais da tela, enquanto era executado o primeiro movimento da ópera de Carlos Gomes. Era uma coisa deslumbrante", lembra.

No início, o trecho da ópera era executado ao vivo. Regentes famosos se revezavam no comando dos músicos da orquestra. Com a chegada do cinema falado, os músicos foram substituídos por música mecânica.

Muitos instrumentistas ficaram desempregados e abandonaram a profissão ou então acabaram disputando espaço nos poucos cabarés existentes na cidade.

Pra quem já atravessou o Rubicão do meio século de existência, o cinema era uma parte doce da vida, o farnel de sonhos e crenças, no incessante anelo da ilusão perdida.

A ameaça de fechá-lo era a tragédia de perdê-lo.


Os casais se conheciam no interior mágico de um cinema Avenida, Guarany ou Ypiranga.

E iniciavam o namoro, que era infinito enquanto durava, na espera do quimérico final feliz dos filmes românticos.

“Quando eu tinha sete anos, minha avó, que apreciava contar os filmes costurando a vida, levou-me à matinê de À Noite Sonhamos. E nunca mais parei de sonhar”, relembra o advogado José Henrique Silva.

Infelizmente, nas últimas décadas, cinemas abrem e fecham sem nenhuma relação afetiva com a cidade. Ninguém mais se importa.

O antigo espaço do Cine Guarany foi ocupado pelo Banco Itaú, à revelia do movimento para mantê-lo funcionado intentado por jornalistas, artistas plásticos, escritores, músicos, estudantes e o seu público cativo no estágio final – prostitutas, homossexuais, desocupados e mendigos –, quando o cinema passara a exibir apenas filmes apelativos (pornô, chanchadas e kung fu).

Esse público cativo, de acordo com a lenda sobre a “última sessão do cinema Guarany”, ficou postado em frente ao cinema, no dia da sua demolição.

Enquanto observavam o trabalho hercúleo dos pedreiros, incapazes de arrancarem qualquer fragmento da construção histórica, também aplaudiam delirantemente a cada golpe suportado pelo cinema.


Resistiu bem, o intrépido Cine Guarany, aos golpes iniciais de marreta e picareta.

Quando, entretanto, o primeiro grande bloco de concreto se soltou, os espectadores encetaram a marcha fúnebre do desespero, do desassossego e da impotência pela perda de mais uma referência cultural e foram afogar suas mágoas no primeiro bar que encontraram aberto, muitos deles portando pedaços dos tijolos quase centenários.

A demolição havia deixado ruínas também em suas memórias afetivas.

Como diria Caetano Veloso, aquele tinha sido apenas mais um round vencido pela força da grana, que ergue e destrói coisas belas.

Samba-enredo: Nem Guarany, Nem Guaraná...

Compositores: Ivan Mendonça e Cláudio Sargento

Explode o peito de amor
E solta o grito no ar
Sou Reino Unido
Ninguém vai me segurar
Este palco iluminado é meu chão
Sou a arte que parte do povão
Nem Guarany, nem guaraná
Ai que saudade
Ainda arde aqui dentro a realidade
Na memória, minha história de glórias
Minha cultura vem de berço
No início Julieta encantou
Brilhou na sociedade, acreditou
Na ilusão do sonho do Eldorado
Pompa, luxo, belo cenário
Surgia a estrela da alegria
Para orgulho de Manaus havia
Café Avenida e muita diversão
Sob a luz da câmera: Ação!
No escurinho do cinema eu sei que vou te seduzir
E no compasso bate forte o coração pra te aplaudir
Na transformação
Minha emoção passou a ser o Alcazar
Mais tarde entrou em cena o Guarany
Cuja última sessão eu assisti
Identidade cultural onde é que está?
Vamos resgatar
Capitalismo foi tomando seu lugar
Só pensando em desbancar
Minhas raízes ninguém pode derrubar


O partideiro Alfredo Lara, filho de Dona Ivone Lara, e Ivan de Oliveira

Enquanto o Barracão da Reino Unido começava a fervilhar de gente, para transformar as idéias do carnavalesco em fantasias e alegorias, a presidente Socorro Colares saboreava sua primeira vitória: em parceria com a Ageesma, a Rede Calderaro de Comunicação havia escolhido o Rei Momo e a Rainha do Carnaval e ambos os títulos ficaram com os meninos do Morro.

O evento aconteceu no Olímpico Clube, com a presença da banda Os Embaixadores e a bateria do GRES Unidos da Alvorada.

A Comissão do Júri foi formada por jornalistas, radialistas e artistas plásticos, que julgaram os itens simpatia, desenvoltura, beleza plástica e samba no pé.

Concorrendo com 17 candidatas, a rainha de bateria da Reino Unido, Érica Pinheiro, de apenas 15 anos, obteve 166 pontos, nove pontos de diferença para a segunda colocada, Janeil Malta, da Aparecida. Eliana Lucena, da Balaku Blaku, ficou em terceiro lugar, com 156 pontos.

Quanto ao Rei Momo, 11 candidatos de peso disputavam o título, que acabou ficando com Léo do Reino.

Era a primeira vez que os principais personagens do carnaval amazonense pertenciam à mesma escola de samba.

Apesar de ser um enredo de “protesto”, a Reino Unido surpreendeu na avenida ao mostrar um carnaval original, criativo e com muita alegria.

O samba-enredo, fácil de ser cantado, contagiou as alas, que cantaram a pleno pulmões e levantaram as arquibancadas.

As fantasias de bom gosto e a beleza dos carros alegóricos mostravam que a escola iria pras cabeças.


A impecável Bateria Furiosa foi fundamental para garantir a empolgação da escola.

No Estandarte de Ouro, o julgamento paralelo promovido pela Rede Calderaro de Comunicação, a Reino Unido conquistou o 1º lugar, ficando a Aparecida em 2º.

O Morro da Liberdade explodiu em alegria e começou a comemorar o título antecipadamente.

No desfile oficial, promovido pela Ageesma, entretanto, a Aparecida, que recebeu nota máxima em todos os quesitos, ficou em 1º lugar, a Grande Família em 2º e a Reino Unido em 3º.

Foi uma ducha de água fria nos meninos do Morro.

Choveram protestos de todos os lados.

Com o tema “Lua, luar – olha o boto, sinhá!”, a Aparecida havia homenageado o senador e ex-governador Gilberto Mestrinho (PMDB), o que levantou suspeita de que o título havia sido um “acordo político” para agradar o velho timoneiro.

Mas o mesmo não podia ser dito da Grande Família, que com o enredo “Laços e abraços... Maranhão, cultura popular”, havia homenageado o compositor Antonio Soares de Oliveira, mais conhecido como Mestre Maranhão, fundador do GRES Barelândia, em 1980, no Parque Dez, e criador do garrote Luz de Guerra, nos anos 60, na Matinha, onde procurava manter-se fiel ao verdadeiro auto do bumba-meu-boi maranhense.

Apesar de muito decepcionada com o resultado oficial da Ageesma, a presidente da escola, Socorro Colares, não perdeu o fair-play:

– Perder o título por uma suposta injunção política é uma coisa que dói muito, mas não vamos ficar lamentando a derrota nem culpar esse ou aquele jurado. Pelo contrário. Essa derrota vai nos fazer trabalhar em dobro para conquistar o título do próximo ano –, garantiu.

A nova década estava apenas começando.

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