domingo, 6 de fevereiro de 2011

Carnaval 1989 - A Lenda do Boto Tucuxi


No dia 18 de janeiro de 1989, em matéria publicada no suplemento “Cultura em Dia”, do jornal Amazonas em Tempo, o jornalista Inácio Oliveira destrinchou o tema daquele ano:

O sambista Américo Madrugada já lançou o tema ecológico da Banda Independente Confraria do Armando – BICA, que vem sendo destaque todas as noites no Bar do Armando, para a apresentação do primeiro grande ensaio, com o tema a Lenda do Boto-Tucuxi.

O nego Américo que não tem nada de ecologista de Ipanema e nem freqüenta as obras da Manaus Moderna por simples falta de hábito da leitura do livro “Lendas Amazônicas”, de Altino Bertier, ataca com a lenda do boto-tucuxi, que lhe foi psicografada pelo babalorixá e químico Nestor Nascimento, na última noite de sexta-feira, 13, embaixo de um lampião de querosene do Teatro Amazonas.

“O tema ecológico surgiu com a percepção da realidade amazônica, que tem pressa em destruir a nossa floresta. Agora estamos sabendo que há criação de botos fora de Manaus. Já estão nascendo até fora de nossos rios, em cativeiros, quando nossos pais diziam que o boto era encantado e foi criado para emprenhar as menininhas”, lembrou Américo, cantarolando o samba para o garçom Pingüim, que não entendia a estrofe que diz que o boto é fariseu.


Américo também tentou explicar por que somente o seu samba-enredo concorreu para o carnaval da BICA.

“Está na boca do povo e é o melhor apresentado até aqui. Se aparecer um melhor, tudo bem, a gente compreende. Mas o boto-tucuxi já está consagrado até pelo Armando, que canta diariamente. O difícil é ele pronunciar boto-tucuxi, mas com os ensaios ele chega lá”, ironizou Américo.

A Cervejaria Miranda Corrêa mostrou-se sensibilizada com a manifestação cultural da Banda Independente Confraria do Armando (BICA) e vai patrocinar a fantasia do grupo – uma camiseta e uma cueca samba-canção – e mais um barril de chope, que ficará à disposição dos biqueiros na Praça de São Sebastião.

O comunicado foi feito ontem à noite, no bar, pelo publicitário Edson Gil Costa, que elogiou o empenho dos biqueiros em manter vivo o espírito mais ingênuo do carnaval, que é caracterizado pela BICA.

Com o apoio garantido, os biqueiros reuniram-se ontem à tarde para finalizar os preparativos do carnaval programado para o próximo dia 21, sábado, com a saída da banda do Bar do Armando, percorrendo a avenida Getúlio Vargas, Floriano Peixoto, rua dos Andradas, avenida Eduardo Ribeiro e praça São Sebastião.

Este ano, a BICA vai homenagear o artista plástico Manoel Borges, um dos biqueiros fundadores e criador do estandarte da banda e também a banda do Mandy’s Bar do Hotel Amazonas em reconhecimento pela criação da primeira banda de Manaus.

Os integrantes da BICA voltam a solicitar a colaboração de quem ficou com o estandarte da banda para devolvê-lo por ser uma peça histórica, além do reconhecimento de ser uma obra eterna do artista Manoel Borges, que faleceu no ano passado.

Um destaque da BICA desse ano vai ser o casamento do garçom Pingüim com outra biqueira contumaz, a alegre Petronila, que vai ser tombada como patrimônio histórico do conjunto arquitetônico que compõe a Igreja de São Sebastião, Teatro Amazonas e outros prédios da Praça de São Sebastião.

A Lenda do Boto Tucuxi

Autores: Hemetério Cabrinha, José Esteves e Américo Antony
Médium: Américo Madrugada

Na época do tititi
Boiava em Manaus o boto tucuxi
Um tremendo fariseu
Dizendo que reinava até o ano 2000
Mas o tempo se passou
A história não se repetiu
Foi o rei Artur que falou
Lugar de boto é lá
Para o fundo do rio!

Foi pra lá...
Foi pra cá...
Não se deu bem
Porque não soube
Urna emprenhar (bis)


No primeiro plano, Francisco Cruz, Dona Lourdes e Petronila. Agitando o talco, Neidinha, Manuel Batera, Anselmo Chíxaro, Jorge Álvaro e Almerinho Botelho

No dia 21 de janeiro de 1989, em matéria publicada no jornal Amazonas em Tempo, o jornalista Mário Adolfo mostrou que a BICA brindava e pedia passagem:

Colocar a BICA na rua, a Banda Independente da Confraria do Armando, não é tarefa das mais fáceis.

Para isso foi preciso confeccionar 3.000 cuecas samba-canção, 3.000 camisetas, encomendar 200 grades de cerveja e assar 500 pernis de porco, tarefa que ficou a cargo de dona Lourdes, esposa do português Armando Soares, proprietário do boteco onde bebem intelectuais, artistas, jornalistas e outros boêmios.

Concluídas as tarefas essenciais para o bem-estar de seus amantes, a BICA desfila hoje pelas ruas do centro da cidade, levando no seu coração um monte de felicidades e alguns rasgos de saudades.

Uma delas pelo falecimento do artista plástico Manoel Borges, que desenhou o estandarte da banda em seu primeiro ano, 1987, e outra pelo seu porta-bandeira, Aldemar “Téquenfim” Bonates, que se encontra fazendo um estágio no frevo de Olinda, mais precisamente no “Bacalhau do Batata”.

A BICA desfilou pela primeira vez em 1987, já de camiseta e cuecas samba-canção, empolgando o centro da cidade.

A partir dessa dia ganhou fama e passou a ser um dos mais badalados carnavais de Manaus.

Em 1988, próximo do carnaval, a genitora de Armando se encontrava enferma e os freqüentadores do bar acharam por bem cancelar o desfile.

– E agora, o que eu vou fazer com as cervejas que eu encomendei, ora, pois, pois?... –, questionou à época o português.

A Banda Independente da Confraria do Armando foi fundada no dia 17 de janeiro de 1987, na terceira mesa, à esquerda de quem entra no bar, pelos músicos Celito Chaves, Afonso Toscano, Manuel Batera e Mário Buriti.

– Estava quente e a gente não tinha nada para fazer a não ser beber. Depois de amassar algumas ampolas, começamos a falar de carnaval e foi sugerido, não me lembro por qual de nós, lançar uma banda nos mesmos moldes da Banda de Ipanema, do Rio de Janeiro, que hoje é conhecida nacionalmente –, conta Toscano, que naquele ano não mediu esforços, junto com o Celito e sua esposa, Heloísa Chaves, para colocar a BICA na rua.

Este ano a BICA não conta nem com Celito e nem com Toscano. Celito viajou para uma fazenda de Minas Gerais, onde foi tratar do fígado, bombardeado no Natal, e Afonso Toscano está de mal com a dona Lourdes.

A briga tem várias versões. Uma delas é que o compositor estava compondo uma música na mesa que fica na calçada do bar, quando parou um garoto high-society na calçada com o som mais alto e perturbador que o do edifício-garagem Jorge Teixeira.

– Por favor, dá pra baixar um pouco! –, sugeriu Toscano.

O playboy voltou no carro e arregaçou ainda mais.

Antes de decidir quebrar o violão na cabeça do roqueiro, Toscano foi falar com dona Lourdes, que estava no balcão.

E ouviu a seguinte frase:

– Ô rapaz, estás a pensares que isso aqui é governo de Salazar?... Estamos numa democracia. Tu tocas bossa nova e ele ouve rock e estamos conversados!

Afonso pagou a conta, meteu a viola no saco (de pano) e nunca mais voltou no bar.

Mas como íamos dizendo no início da matéria, a BICA foi fundada naquela tarde calorenta no Bar do Armando e foi lá mesmo que Celito e Toscano começaram a compor os primeiros versos da marcha que caiu na boca do povo: “Na Banda Independente Confraria do Armando, tá todo mundo dando, tá todo mundo dando!”.

No dia 3 de fevereiro, Manoel Borges, um dos mais talentosos desenhistas e pintor de Manaus, desenhou o estandarte da banda, representado por uma cueca samba-canção, marca registrada da BICA.

Para colocar a BICA na rua, Celito, Afonso e Heloísa realizaram um árduo trabalho, rodando um livro de ouro de mesa em mesa, todos os dias da semana, até conseguir o total de NCz$ 7.940,00 que, no auge do Plano Cruzado, rendeu muito.

– Veja o absurdo da política econômica do governo. Só os músicos este ano cobraram NCz$ 700,00 (setecentos mil cruzados na antiga moeda) para tocarem quatro horas –, queixou-se Manuelzinho Batera, o novo homem da BICA ao lado de Luiz Wagner.

A concentração da BICA começa às 12 horas, na frente do “Bar e Mercaria Nossa Senhora de Nazaré”, que, para quem não sabe, é o próprio Bar do Armando.

As últimas cuecas e camisetas estão sendo vendidas a NCz$ 5,00 o conjunto.

Até ontem à tarde, continuava a campanha e apelos para que o estandarte da BICA fosse devolvido.

A peça de cetim, pintada por Borges, desapareceu após o desfile de 1987.

– Pelo amor de Deus, vocês já imaginaram o valor histórico que tem esse pedaço de pano? Está assinado por Borges e depois é o primeiro estandarte por isso é histórico –, diz Manuel Batera.

Apesar de consumirem 35 grades de cerveja Antarctica por noite no Bar do Armando, a distribuidora se recusou a dar qualquer tipo de ajuda à banda.

O carnaval da BICA está sendo bancado pela Brahma, que além de ajuda financeira, mandou 58 grades de cervejas para os brincantes.

Depois de abastecidos seus componentes, a BICA iniciará o desfile descendo a 10 de Julho, Getúlio Vargas, Floriano Peixoto, Marquês de Santa Cruz, Eduardo Ribeiro e novamente 10 de Julho, encerrando (ou começando?) o carnaval na Praça São Sebastião.

Por falar em saudades, a BICA está sentindo a ausência não só do Manoel Borges, mas também do português Cancela, que morreu em 1988, mas está imortalizado num dos versos da marchinha da banda: “De camiseta e samba-canção/ Vamos dançando ateus e cristãos/ Nossa estandarte é uma cueca/ Com cebola e mortadela/ Será que é do Armando?/ Será que é do Cancela?”.


Lucia Antony, Amecy Souza e Zeca Alfaia esquentando as turbinas

No dia 24 de janeiro de 1989, em matéria publicada no jornal Amazonas em Tempo, Mário Adolfo fazia uma avaliação crítica do desfile da BICA:

Daqui por diante, quem quiser fazer um carnaval sem violência deve seguir o exemplo da Banda Independente da Confraria do Armando, a BICA, que desfilou sábado passado e colocou cerca de 5 mil pessoas na rua, sem nenhum tipo de briga ou conflitos entre os participantes.

Nunca se viu uma bagunça tão organizada.

Apesar da falta de um sistema de som, a marcha-enredo de autoria do sambista Américo Madrugada foi cantada a plenos pulmões, numa sátira à vitória do prefeito Artur Neto, chamado pela música Rei Artur, imposta sobre o velho cacique Gilberto Mestrinho.

E por falar em Artur, parte de seus mais diretos assessores esteve prestigiando a BICA, entre eles o secretário de Finanças Serafim Corrêa e a secretária particular Fafá Andrade.

– Eu sempre freqüentei o Bar do Armando. Não seria agora que estou secretário que deixaria de rever amigos e embarcar nessa alegria! –, comentou Serafim Corrêa.

A secretária para Assuntos Comunitários, Magela Andrade também estava presente.

A concentração da BICA começou depois do meio-dia.

No início, intelectuais, jornalistas, artistas plásticos, publicitários e outros tipos de boêmios tomaram toda a rua 10 de Julho, mas com a forte chuva que caiu, todos se refugiaram no bar, tornando o amplo salão do boteco do português uma loucura total.

Duas baterias se revezavam no som. Uma tocando marcha e a outra pagode.

O refrão do samba do Américo era o mais cantado, principalmente na parte em que dizia “Mas o tempo se passou/ A história não se repetiu/ Foi o Rei Artur que falou/ Lugar de boto é lá para o fundo do rio”.

O calor era insuportável. Até as 15 horas, o pessoal da banda já havia abatido 50 grades de cervejas e a muito custo Armando conseguiu controlar as despesas.

As camisetas e as cuecas samba-canção, patrocinadas pela Brahma Chopp, não deram para quem queria e logo depois de 14 horas já não tinha mais, nem mesmo para os tradicionais freqüentadores do bar que haviam reservado com antecedência.

– Para o ano vamos aumentar a produção! –, prometeu um dos homens fortes da BICA, Manuelzinho Batera, que teve de ceder a própria cueca para não perder um amigo.

Eram quase 17 horas quando membros do “Politiburo” do bar do Armando tentavam iniciar o desfile, mas ninguém se dispôs a parar de beber e de sambar no interior do bar.

Foi aí que alguém teve a idéia de acionar um extintor de incêndio que expulsou todo mundo, com os olhos lacrimejantes, para o meio da rua.

Com a chegada de Petronila, 62 anos, tradicional boêmia do bar, o desfile foi iniciado pela rua 10 de Julho, Getúlio Vargas, Sete de Setembro, Eduardo Ribeiro e retornando ao Armando por volta das 19 horas.

A música de encerramento foi a marcha criada por Celito e Afonso Toscano em 1987: “Na Banda Independente Confraria do Armando/ Tá todo mundo dando/ Tá todo mundo dando (...)”.

Depois desse carnaval, a BICA emplaca, definitivamente, ao lado da Banda Amazonas (antiga Mandy’s), o título de banda mais popular de Manaus.


Dona Lourdes e Armando comemorando mais um desfile vitorioso da BICA

Nenhum comentário:

Postar um comentário